sexta-feira, 27 de maio de 2011

Despedida de solteiro

  
 Fim de semana retrasado nos retiramos ao Teto do Cafundó. Como o nome diz, um lugar alto e longe. Na verdade, não é tão longe assim, mas o suficiente para nos sentirmos distantes da cidade e suas poluições. 
 Já tinha o lugar em mente, São Francisco Xavier, na Serra da  Mantiqueira, então foi mais fácil procurar a pousada pela internet, logo achei um site bonito, com fotos maravilhosas, tudo perfeito, a não ser meu jeito sempre desconfiado: será que a realidade corresponde ao bem-estar que as imagens transmitem? 
 Como meu pai sempre diz, quem não arrisca, não petisca, então parei de pensar no que poderia dar errado e liguei para fazer a reserva. Lotado! Que azar, mas mantive a esperança, deixei meu celular e um pedido para retornar se houvesse desistência. Que sorte! Conseguimos um chalé.
 Ainda que fosse apenas 19h., chegamos lá com a noite densa, apreensivos após percorrer uma rodovia sinuosa, um trecho íngreme de estrada de terra, um frio de arrepiar. Na verdade, isso só contribui para o charme do local, pois não tivemos dificuldades em chegar à pousada e, estacionado o carro, já fomos prontamente atendidos.  
  Ficamos muito à vontade. Estar na pousada é melhor do que ver o seu site. O chalé tem o cheiro certo! É tanta madeira, que manter o odor agradável não deve ser fácil. Não dei um espirro sequer. Tudo muito limpo, muito certo, muito completo, muito bem pensado. Acreditem, não só a cama, mas também o ofurô, tem vista para a admirável paisagem. Para a noite, as velas já estão arrumadas e um acendedor estrategicamente localizado. É só acender e ser feliz.
 Os objetos que ornam o chalé - e toda a pousada - não são apenas belos, são também interessantes, peculiares, combinam entre si de uma maneira especial. Tive a sensação de que nada ali foi comprado para montar uma pousada, tudo foi comprado para eles mesmos, os proprietários (talvez fosse melhor chamá-los de idealizadores) da pousada, que abrem sua casa para receber pessoas amigas.
 Quando fui informado de que o local tem uma dvdteca, nem me interessei, pois já imagino que vou encontrar apenas os grandes sucessos de bilheteria, americanos. Dessa vez, para minha surpresa, não foi assim, pelo contrário, tive o prazer de reencontrar alguns títulos e reviver boas lembranças, de filmes que já assistimos juntos: Cinema, Aspirinas e Urubus, O banheiro do papa, A culpa é de Fidel, Volver...  Escolhemos ver "Leonera", para nossa surpresa, retrata a vida de uma mulher grávida na prisão, onde dá a luz e cria seu filho. Aparentemente, é a antítese do luxo que estávamos vivendo. Filmão.
 O café da manhã foi surpreendente, não havia aquela mesa enorme para você se servir, você era servido! Escolhi apenas que suco queria tomar (as opções eram interessantes) e, não sei como, já descobriram que eu não gosto de bacon, ovos, salsicha. Gosto de começar o dia comendo frutas, que nessa ocasião, vieram preciosamente cortadas e apresentadas no prato. Depois, nos trouxeram um crepe com queijo quente, preparado na hora, por fim, pães quentinhos, manteiga, requeijão, geléia, frios. Tudo com a maior qualidade. Poucas quantidades, muita diversidade. Comemos de tudo um pouco e ficamos satisfeitos, plenos de corpo e alma, sem necessidade de nos sentir pesados. 
 Essa minha descrição já se estende e isso me entristece. Lembro-me dos livros de Eça de Queiroz que fui obrigado a ler na adolescência, desde então, tenho uma aversão por longos textos descritivos. Deixe-me então dizer algo que talvez explique e substitua todas as descrições. É impossível compor um ambiente tão agradável apenas com dinheiro e objetos. É preciso amor, vida, pessoas.
 O Renato e Tatiana, que são os idealizadores e mantenedores da pousada, receberam-nos pessoalmente, com tal satisfação e alegria, que tive a impressão de estar reencontrando velhos amigos em sua casa. Há algo de especial, uma espontaneidade, que é muito diferente de ser recebido por um profissional da hotelaria, treinado em cursos, que por melhor que sejam, tem algo de artificial. 
 Eles já viajaram o Brasil e o mundo, a todo momento, tinham algo interessante ou divertido para nos dizer. Seja um acontecimento, um filme, uma notícia, um livro, um novo signo do zodíaco, um objeto, uma pessoa. Nenhum alimento nos foi servido sem uma contextualização, que agregava mais sabor e sentido. São mestres na arte de bem receber.   
 Esse fim de semana, tive a felicidade de saber exatamente o que eu queria (afastando a dúvida e a confusão que assombra àqueles que consideram as múltiplas possibilidades) e alcançar esse desejo, ainda sobrando espaço para me surpreender positivamente. 
 Vivemos o que me pareceu, na falta de um nome melhor, uma "despedida de  solteiro". A pousada não é adequada para crianças, não poderemos voltar lá tão cedo. Depois de quase cinco anos de casado, os passeios românticos, os jantares a dois, certamente vão acabar. Que venham os hotéis-fazenda!
 site da pousada (não ganho comissão): http://www.tetodocafundo.com.br/

sexta-feira, 13 de maio de 2011

contrações e discontrações

Até pensei em comentar via facebook no domingo, mas passou sem que a ideia se concretizasse, certamente atropelada por outras ideias e afazeres, mas como hoje é sexta-feira e ainda me lembro com alegria do filme, sinto que isso é um sinal, quase uma prova, de boa qualidade, então resolvi escrever esta nota. Domingo de tarde, assisti com minha esposa a um filme francês em dvd, não tem a profundidade, a densidade, a complexidade que se espera de um filme francês, era uma comédia e não sou muito chegado em comédias estrangeiras, das americanas não gosto de nenhuma, sendo a única exceção o seriado Friends, que acho genial, com a observação de que precisei assistir aos primeiros episódios para pegar o espírito da série e assim fui assistindo, na sequência, com a comodidade que o dvd proporciona. Na verdade, para o domingo, gostaríamos de alugar “minhas mães meu pai”, mas como não havia disponível, alugamos essa comédia francesa mesmo, esperando um filme leve e divertido, para entreter e foi exatamente isso que encontramos. No início, fiquei meio decepcionado, pois achei que seria uma típica comédia do cara que só faz burradas e só se dá mal do começo ao fim, mas o filme não é sobre isso, é muito melhor. O protagonista é gerente dos correios e mora no sul, queria ser transferido para a riviera e morar à beira do mar, mas é transferido para o extremo oposto, numa cidadezinha no norte da França, então começa uma brincadeira com os estereótipos entre o sul e norte, que até então eu desconhecia. Segundo o filme, o sul é o lugar quente, iluminado e abençoado, com muita arte, cultura e boa culinária, já o norte é um lugar escuro, frio e chuvoso, em que todos trabalham em minas de carvão, as pessoas mal sabem falar e vivem isoladas do mundo, embriagadas para não encarar a sua dura realidade. É divertido ver os próprios franceses ridicularizando o seu queijo fedido, ironizando suas diversidades de pronúncias. O filme ainda fala de preconceitos e sua superação, de bairrismos, de "caipirice", da amizade, do amor, da vizinhança, das mães, da bebedeira, da mentira, da verdade... Biloute, fica aqui a dica, o filme se chama “a riviera não é aqui”, é um filme água com açúcar, gostosinho, ótimo para distrair e passar o tempo. 


 O que isso tem a ver com o tema deste blogue? Tudo. Grávidos precisam relaxar o corpo e a mente. Com a minha esposa está tudo muito bem. Eu é que fico discretamente nervoso, silenciosamente ansioso, vendo o barrigão imenso, imaginando o que me espera, a expectativa que se alonga, sem nada para fazer a não ser aguardar a vida desenrolar seu fio. Por isso, escrever sobre cinema, que é uma das minhas grandes paixões, é boa distração e mais fácil, acho que até mais útil, que pensar em gravidez, parto, bebê, contrações de braxton-hicks... Ah, por isso também, vamos passar o fim de semana no alto da montanha, relaxante, esperando boa culinária, bom descanso, boas fotos e um friozinho acolhedor.

domingo, 8 de maio de 2011

Dia das Mães

Foto por: Maura/Acervo Particular
 Hoje é domingo, dia costumeiramente familiar, este ainda mais, pois é o domingo do dia das mães. Não vou passá-lo com minha mãe, como certamente já aconteceu outras vezes, sequer comprei um presente especialmente para a data.

 Para nascer um pai, é necessário que antes nasça o homem. Para nascer o homem, é preciso que ele se liberte de sua mãe.


 É assunto de psicoterapia, então, desde já aviso, por mais que eu esteja falando de minha mãe, em verdade estou sempre falando é de mim mesmo. Minha posição de observador nesse assunto não é privilegiada, pelo contrário, é muito suspeita.

 O xis da equação é compreender o significado do verbo libertar, já que teus pais podem estar fisicamente mortos e você ainda não se libertou deles, bem como é possível morar na casa de seus pais sem estar preso a eles. Acho que a primeira vez que vi isso foi na TV Cultura, "Confissões de adolescente", bom tempo atrás.

 Para mim, num passado recente, essa libertação significou sonegar meus sentimentos mais particulares, cultivando uma distância que, evidentemente, incomodou minha mãe. Ela jamais mereceu qualquer tipo de desatenção, pelo contrário, faz jus aos elogios tão repetidos nesta data, que nunca deixei de expressar, ainda que algumas vezes tímido, falando com o som mudo do coração, que ela sempre soube ouvir. 

 O que a incomovada profundamente é que, se ela não sabia como eu estou, o que estava acontecendo comigo, como poderia me ajudar? 

 Não pensem vocês que deixei de ligar e dizer que estava tudo bem! Um tudobem assim qualquer um diz, ela queria ouvir, sentir e se certificar de que estava tudo realmente bem, em um nível que eu acredito que as coisas nunca vão estar. Assim fui estabelecendo um distanciamento saudável, para que pudesse seguir o meu próprio caminho.  
 Mas não é tão fácil assim classificá-la como uma típica mãe italiana superprotetora. Ela nunca me pareceu uma pessoa simples, provavelmente ouviu de seu pai a frase que hoje transmite para seus filhos: não complique a vida!

 Se tem o apego e o cuidado de uma mãe italiana, também tem a praticidade americana, a sofisticação francesa, o lirismo português, a autoridade alemã, a alegria brasileira, enfim, uma mistura complexa que forma uma pessoa completa.


 Quando digo que minha mãe é professora, muitos pensam que ela é professora de português, mas na verdade sua disciplina é matemática. Lembro-me até hoje da caixa de madeira em que ela guardava o material utilizado para ministrar as aulas. Era divertido, cheio de caixinhas e pecinhas, que se combinavam, umas dentro das outras, a casa das dezenas, centenas e milhares, o cubo, a aresta, o vértice. Tudo era tão lógico que não imaginava como poderia ser de outra forma. Nem sei bem porque fui me bacharelar em direito, já que era nas disciplinas de exatas em que sempre tive mais facilidade e maiores notas.

 Mas ela não se restringiu a matemática, aprofundou seus estudos, fez pedagogia e chegou ao cargo de diretora de escola. Nunca quis ser supervisora, nem delegada de ensino. Embora pudesse, dizia que era muito trabalho, muita responsabilidade, sem contrapartida financeira. Cresci ouvindo minha mãe esbravejar em alto som contra a falta de caráter dos políticos, ainda que eu não entendesse nada dessas coisas, era em casa, capítulo por capítulo, com direito a palavrões, que eu, um pouco assustado, ficava sabendo que estavam ACABANDO com a educação no Brasil.

 Com razão, imagine como foi doído ouvir o governador de São Paulo declarar na imprensa, durante uma greve, que "as professoras não ganham mal, elas são é mal casadas". 
 Assim aprendi não só os postulados matemáticos, mas que o mal do Brasil era a desonestidade dos políticos.  Provavelmente essa indignação de minha mãe é a origem de minha total intolerância com a corrupção.

 Acho que foi nesses estudos de sua carreira, por algum livro de pedagogia ou psicologia, que ela e meu pai se convenceram de que o melhor para os filhos era eles seguirem um caminho próprio, serem independentes. Não sei se o livro lhes indicava o custo emocional que isso lhes traria, mas sei que não hesitaram em fazê-lo, ainda que sentissem doer na própria carne.

 Como arcos, se curvaram, se esticaram, para lançar seus filhos, como flechas, para o alto, para frente.   Quem vê a flecha voando na imensidão do céu azul, pode admirar sua beleza e sentir o ar da liberdade, mas normalmente se esquecem dos arqueiros que as lançaram*.

 Apenas muito recentemente comecei a pensar que minha liberdade, minha independência, foi o último presente que ganhei de meus pais. A chave de ouro com que encerraram minha formação. Passei a olhar para trás e achar que eu sou apenas um projeto bem sucedido deles, que não fiz muito mais do que já estava planejado.

 É verdade que as margens que me direcionavam eram amplas. Também é claro que muitas vezes desviei da rota, pude ser feliz e me frustrar andando fora da trilha, mas não são essas variações que me definem. Já não sei bem ao certo se fui eu quem saiu de casa ou se foi a casa que saiu de mim. Minha emancipação se deu à moda luso-brasileira, não anglo-americana.

 Assim tenho um sentimento bem contraditório. Ao mesmo tempo que me sinto livre e independente, sinto que estou apenas cumprindo o roteiro determinado. E não é exatamente essa tensão entre destino e livre arbítrio que faz o enigma da vida humana? E não é exatamente a vida que meus pais me deram? Buscar em nossos pais a origem da vida é interessante, mas também tem seus mistérios.

 Desta vez, não é por minha conta que não vamos almoçar juntos no dia das mães. Ela está em Paris, a sós com o meu pai, num passeio que planejaram há mais de trinta anos. Estão aproveitando. 


 Como filho que sou, penso que meu presente também é deixá-los livres e tranquilos. Certos de que fui um bom menino e sou um bom homem, honesto e capaz de conduzir a vida, material e espiritual, por seus próprios meios.

 Obrigado, boa viagem e feliz dia das mães!

a metáfora do arco e flecha é de autoria de Gibran Khalil Gibran