domingo, 8 de maio de 2011

Dia das Mães

Foto por: Maura/Acervo Particular
 Hoje é domingo, dia costumeiramente familiar, este ainda mais, pois é o domingo do dia das mães. Não vou passá-lo com minha mãe, como certamente já aconteceu outras vezes, sequer comprei um presente especialmente para a data.

 Para nascer um pai, é necessário que antes nasça o homem. Para nascer o homem, é preciso que ele se liberte de sua mãe.


 É assunto de psicoterapia, então, desde já aviso, por mais que eu esteja falando de minha mãe, em verdade estou sempre falando é de mim mesmo. Minha posição de observador nesse assunto não é privilegiada, pelo contrário, é muito suspeita.

 O xis da equação é compreender o significado do verbo libertar, já que teus pais podem estar fisicamente mortos e você ainda não se libertou deles, bem como é possível morar na casa de seus pais sem estar preso a eles. Acho que a primeira vez que vi isso foi na TV Cultura, "Confissões de adolescente", bom tempo atrás.

 Para mim, num passado recente, essa libertação significou sonegar meus sentimentos mais particulares, cultivando uma distância que, evidentemente, incomodou minha mãe. Ela jamais mereceu qualquer tipo de desatenção, pelo contrário, faz jus aos elogios tão repetidos nesta data, que nunca deixei de expressar, ainda que algumas vezes tímido, falando com o som mudo do coração, que ela sempre soube ouvir. 

 O que a incomovada profundamente é que, se ela não sabia como eu estou, o que estava acontecendo comigo, como poderia me ajudar? 

 Não pensem vocês que deixei de ligar e dizer que estava tudo bem! Um tudobem assim qualquer um diz, ela queria ouvir, sentir e se certificar de que estava tudo realmente bem, em um nível que eu acredito que as coisas nunca vão estar. Assim fui estabelecendo um distanciamento saudável, para que pudesse seguir o meu próprio caminho.  
 Mas não é tão fácil assim classificá-la como uma típica mãe italiana superprotetora. Ela nunca me pareceu uma pessoa simples, provavelmente ouviu de seu pai a frase que hoje transmite para seus filhos: não complique a vida!

 Se tem o apego e o cuidado de uma mãe italiana, também tem a praticidade americana, a sofisticação francesa, o lirismo português, a autoridade alemã, a alegria brasileira, enfim, uma mistura complexa que forma uma pessoa completa.


 Quando digo que minha mãe é professora, muitos pensam que ela é professora de português, mas na verdade sua disciplina é matemática. Lembro-me até hoje da caixa de madeira em que ela guardava o material utilizado para ministrar as aulas. Era divertido, cheio de caixinhas e pecinhas, que se combinavam, umas dentro das outras, a casa das dezenas, centenas e milhares, o cubo, a aresta, o vértice. Tudo era tão lógico que não imaginava como poderia ser de outra forma. Nem sei bem porque fui me bacharelar em direito, já que era nas disciplinas de exatas em que sempre tive mais facilidade e maiores notas.

 Mas ela não se restringiu a matemática, aprofundou seus estudos, fez pedagogia e chegou ao cargo de diretora de escola. Nunca quis ser supervisora, nem delegada de ensino. Embora pudesse, dizia que era muito trabalho, muita responsabilidade, sem contrapartida financeira. Cresci ouvindo minha mãe esbravejar em alto som contra a falta de caráter dos políticos, ainda que eu não entendesse nada dessas coisas, era em casa, capítulo por capítulo, com direito a palavrões, que eu, um pouco assustado, ficava sabendo que estavam ACABANDO com a educação no Brasil.

 Com razão, imagine como foi doído ouvir o governador de São Paulo declarar na imprensa, durante uma greve, que "as professoras não ganham mal, elas são é mal casadas". 
 Assim aprendi não só os postulados matemáticos, mas que o mal do Brasil era a desonestidade dos políticos.  Provavelmente essa indignação de minha mãe é a origem de minha total intolerância com a corrupção.

 Acho que foi nesses estudos de sua carreira, por algum livro de pedagogia ou psicologia, que ela e meu pai se convenceram de que o melhor para os filhos era eles seguirem um caminho próprio, serem independentes. Não sei se o livro lhes indicava o custo emocional que isso lhes traria, mas sei que não hesitaram em fazê-lo, ainda que sentissem doer na própria carne.

 Como arcos, se curvaram, se esticaram, para lançar seus filhos, como flechas, para o alto, para frente.   Quem vê a flecha voando na imensidão do céu azul, pode admirar sua beleza e sentir o ar da liberdade, mas normalmente se esquecem dos arqueiros que as lançaram*.

 Apenas muito recentemente comecei a pensar que minha liberdade, minha independência, foi o último presente que ganhei de meus pais. A chave de ouro com que encerraram minha formação. Passei a olhar para trás e achar que eu sou apenas um projeto bem sucedido deles, que não fiz muito mais do que já estava planejado.

 É verdade que as margens que me direcionavam eram amplas. Também é claro que muitas vezes desviei da rota, pude ser feliz e me frustrar andando fora da trilha, mas não são essas variações que me definem. Já não sei bem ao certo se fui eu quem saiu de casa ou se foi a casa que saiu de mim. Minha emancipação se deu à moda luso-brasileira, não anglo-americana.

 Assim tenho um sentimento bem contraditório. Ao mesmo tempo que me sinto livre e independente, sinto que estou apenas cumprindo o roteiro determinado. E não é exatamente essa tensão entre destino e livre arbítrio que faz o enigma da vida humana? E não é exatamente a vida que meus pais me deram? Buscar em nossos pais a origem da vida é interessante, mas também tem seus mistérios.

 Desta vez, não é por minha conta que não vamos almoçar juntos no dia das mães. Ela está em Paris, a sós com o meu pai, num passeio que planejaram há mais de trinta anos. Estão aproveitando. 


 Como filho que sou, penso que meu presente também é deixá-los livres e tranquilos. Certos de que fui um bom menino e sou um bom homem, honesto e capaz de conduzir a vida, material e espiritual, por seus próprios meios.

 Obrigado, boa viagem e feliz dia das mães!

a metáfora do arco e flecha é de autoria de Gibran Khalil Gibran

5 comentários:

  1. Marcelo
    Me emocionei com suas palavras. Como conheço bem cada personagem da história, posso confirmar como cada um exerceu e ainda exerce seu papel pré-determinado. Mãe, pai, filhos, 'cada um na sua'!
    O real reconhecimento de um filho - agora futuro pai - somente se dá neste caso. A gente se vê com outros olhos, consegue enxergar lá do alto e analisar os porquês de cada decisão tomada noutros dias.
    Tenho certeza de que suas palavras hoje expressam sua real situação de pai-mãe (por que não?)
    Parabéns a Tati e a você. A Alice está em ótimas mãos!
    Bjs

    ***Em tempo: sabe qual é a palavra que me foi 'mandada' digitar para verificar este comentário? DORIC ( não acredito em coincidências!!!)

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  2. Lindo, Marcelo. Seu depoimento é lindo. Obrigada.

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  3. Deborah, muito obrigado! Parabéns a você também, pelos seus filhos, pela sua família, por ser uma mãe amorosa, criativa, moderna, que não perde a capacidade de se reinventar. Beijos, bom domingo das mães!

    Érica, muito obrigado! Esses elogios me estimular a escrever mais, a viver mais.

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  4. Marcelo o seu depoimento é maravilhoso.Você com a riqueza das palavras me emociona sempre.Tenho certeza que vc é o Marcelo que é,pois nós somos reflexos dos nossos pais,e vc tem pais que realmente sempre acrescenta algo de importante em nossas vidas,como ex:uma palavra,uma atitude ou um simples olhar.não sei se vc ou ela sabe de um segredo, que agora já não será mais."Eu sou fã nº1 da da sua mãe desde pequena."Ela era e é a minha base de determinação em meus objetivos quando aluna,e hoje como professora,pois tb sou uma depois de muitos anos retornei a essa difícil missão nos dias de hoje.Encerrando, deixo aqui o agradecimento por poder compartilhar com você esse lindo depoimentos e linda mensagem do dia das mães.Um grande abraço a vocês.

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  5. Rê, não sabia não, meus parabéns a você, que é mãe e professora, sem perder o humor, o sonho, a determinação. Obrigado e beijos!

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