sexta-feira, 25 de maio de 2012

Enfim, nascemos

 Comecei a escrever o texto que segue no terceiro dia após o nascimento da Alice e levei quase um ano para me libertar dele.  


  Eu estava num corredor amarelo, atônito. Do outro lado do vidro, a Alice, rosa e brilhante como só ela, apesar de seus poucos minutos de vida, sabia exatamente o que fazer, enquanto eu, completamente perdido, sentia que tudo o que já vivi e experimentei não me serviria de nada.
  Onde estaria minha mulher, minha esposa, que deixei com as entranhas abertas sob os olhares atentos de quem conversava sobre trivialidades da vida? Presenciar o parto cirúrgico não foi nada agradável, nada mágico, foi especial, sim, foi tocante, mas também foi bruto, sanguinolento, visceral, chocante.
  E essa reforma no hospital, nascer sob os transtornos da construção civil, que coisa! Estavam quebrando o piso no andar de cima, com marretadas ensurdecedoras. Eu não poderia imaginar uma trilha sonora melhor, tão perturbadora. As marretadas soavam como tambores, com suas batidas cardíacas, tremiam fundo no corpo, vibrando os recônditos onde suponho estar alojada a alma. 
  Minha mulher, deitada na maca, com os paramentos, não sorria, como eu estava acostumado, tampouco se emocionava cheia de ternura, como gostamos de ver e imaginar esse momento. Quando ela se desdobrou em duas, eu já não sabia mais de qual deveria cuidar, qual deveria olhar, ou, até mesmo, se deveria olhar para o relógio na parede e registrar com exatidão o momento, ou ainda, perseguir o pediatra para que não trocasse minha filha por outro bebê.
  Alice veio ao mundo perfeita (dias depois entenderia que era um feto perfeito, a pessoa estava só começando), aguardava um alívio para esse tão esperado momento, mas o alívio foi apenas uma gota no novo oceano nos envolveu.
   Alice não nasceu sozinha, junto com ela nasce um pai (e uma mãe, mas isto é outra história). Para nascer um pai, renascer uma nova pessoa, há de morrer algo. Não há nascimento sem a correspectiva ideia de morte. Morre a semente para nascer a flor; morre o ovo para nascer o pinto; a lagarta, para a borboleta.
 O nascimento é algo estonteante. Sente-se uma punção, um corte, um soco, que vai fundo na pele, no coração, na alma. É o chão que lhe falta. Algo que se perdeu, mas não sabemos o que é. Tampouco temos tempo de sentir a falta ou de chorar pela perda, o vazio da morte é muito rapidamente preenchido de vida. A vida em seu estado mais puro, bruto e inquietante.
 É tão romântico ver um pai, em obra de ficção, dizer que o dia mais feliz da sua vida foi o dia do nascimento da sua filha. Acontece que, na realidade, esse dia também é o mais terrível, o mais desesperador. Muita emoção e transformação concentrada em pouco tempo. Desperta, ao mesmo tempo, a racionalidade das responsabilidades e as reações instintivas das paixões.