domingo, 23 de dezembro de 2012

Ser e viver o seu tempo

 Eu tive a sorte de conhecer uma das minhas bisavós e ainda tenho em mente recordações dela. Lembro das balas Soft no enfeite de vidro grosso sobre a mesa da sala (acompanhado dos gritos para não quebrar o vidro e do alerta para não engasgar com a bala, aliás, só ganhei a bala Soft após jurar ter idade suficiente para chupá-la sem tentar engolir). Lembro do livreto de capa dura verde-oliva em que havia a árvore genealógica dela, um intrincado de relações pessoais, que ao meu entender infantil se limitava a ficar impressionado com a lista dos nomes de seus vinte e três irmãos! Minha avó, filha dela, até hoje vangloria a riqueza da família e não nos deixa esquecer que cada um desses irmãos herdou uma fazenda inteira. Lembro também de muitas outras coisas interessantes, como o formato de seu sofá, o cheiro da sua casa, a geladeira com maçaneta, o gosto diferente da salsicha (era perdigão, enquanto que na minha casa era da sadia). 
  São diversas recordações, mas o que me fez lembrar de minha bisavó agora é sua insuperável habilidade para operações matemáticas. Incentivados pelos tios, ficávamos com calculadoras na mão e perguntávamos, quanto é 35 x 15? 42 x 18? Ela sabia! Respondia de cabeça, rapidamente. Era a única que sabia, ninguém mais arriscava a responder sem a calculadora nas mãos ou um pedaço de papel e caneta. É um fato. Hoje fico em dúvida se ela usava uma técnica para  decompor os números mentalmente ou se decorou a tabuada até o 100. Sei que de mim, na escola e na vida, só me exigiam decor a tabuada até o 10.
  Lembrei disso quando vi o terceiro brinquedo da Alice que estimula a criança a aprender o abecedário, aliás, eles tem a mesma música chatinha, que termina assim "Eu já sei o ABC, agora falta só você". Então pensei que a ordem alfabética está fadada a se tornar um conhecimento de historiadores e bisavós. Certamente alguém, um dia, irá confundir a ordem alfabética com um driver que o computador usa para ordenar os dados.
  Claro, ainda será preciso aprender as letras, sua grafia e sua fonética, mas a ordem alfabética, assim como a caligrafia, serão habilidades secundárias. Não me considero um vanguardista, mas não me preocupo nem um pouco se Alice vai ter uma letra bonita. Fico pensando apenas nos vestibulares (se esses perdurarem) ou nos concursos públicos, será que quando chegar a vez dela, ainda serão manuscritos? É tão incerto, que continuo a não me preocupar nada com a caligrafia dela. Aliás, se eu perceber que Alice está se esmerando em fazer uma letra bela, vou entender isso como uma feliz propensão para o desenho artístico, quem sabe ela não será arquiteta?  
 Nesse confronto entre tradição e modernidade eu não tomo partido, aliás, sequer sinto o confronto. Com a mesma naturalidade, ofereço à Alice valores católicos que me formaram e a incentivo a navegar o mundo caótico pelo iPad. Penso que é da mistura que poderá crescer uma boa pessoa, tenha saudades da bisavó ou não.

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