sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Como nasce uma mãe

 A mamãe gestante viveu uma situação especial na semana passada. A areia do fundo do mar subiu tão alto que perdemos a visibilidade em pleno mergulho, levou um bom tempo para que tudo se assentasse novamente. Claro, nunca mais será como antes, mas será melhor agora.

 Minha mulher nunca foi dada a crendices, ainda que nascida nas entranhas do interior de São Paulo, beirando as Minas Gerais, nunca manifestou um provincianismo primário, pelo contrário, sem negar suas origens, tem os pés no chão e a mente aberta, os olhos brilhantes mirados ao longe.

 Bem no início da gravidez, ela teve o pressentimento de que estava esperando um menino, mas não contou para ninguém, pois pensava que essas coisas são bobagens e mães não têm superpoderes.

 Bastou um empurrãozinho e o corpo repleto dos hormônios das transformações da gravidez para que mudasse de opinião.
Embalada por um exame de ultrassom inicial, pelas leitoras de formato de barriga e por algumas brincadeiras, passou a ter a certeza de que estava gestando um menino e a acreditar que mães têm superpoderes.

 Por curiosidade ou para puxar assunto, as pessoas perguntam pelo sexo do bebê, então ela dizia seguramente que estava esperando um menino, quando então eu fazia o meu papel de chato, para dizer que isso não era uma certeza médica. Ela aceitava essa minha condição, mas o fazia racionalmente, só para não me contrariar, pois no seu íntimo estava convicta de que conhecia muito bem o filho que carregava.

 Nunca a recriminei por isso. Sei que eu tenho um perfil racional, metódico, exato, que vai buscar a certeza e a segurança, mas também sei que isso não é suficiente para uma vida saudável. Então me permito conviver com a emoção, o imprevisto, o imponderável e, inevitavelmente, correr riscos. 

 Não despejei a água fria da minha racionalidade na chama acesa dos sonhos da mãe que está nascendo, pelo contrário, aos poucos me deixei hipnotizar pelo seu brilho e sua vibração. Logo estávamos sonhando juntos, felizes, era a nossa realidade. 

 Bem diante dos meus olhos, pouco a pouco, com a maior simplicidade, fui me enrolando em seus sonhos de mãe,  imaginamos a decoração para o quarto, namoramos as vitrines de jóias com pingentes de menininhos, passei a pensar com ela em nomes de meninos e até aceitei que ela comprasse umas roupinhas azuis, ainda que no meu íntimo isso tudo estivesse pendente de confirmação.

 Seu encanto de mãe nascente é tão vistoso e verdadeiro, há uma entrega tão intensa à maternidade, que eu não percebi o quanto, para ela, o bebê estava associado a um sexo definido.

 Se eu vi minha esposa chorar, não passa de três vezes, mulher decidida, sabe o que quer. Mas quando, no último ultrassom, já no final do exame, a dotôra perguntou, querem confirmar o sexo, nós ansiosos respondemos, sim! então veio a novidade, é uma meninona!  Imediatamente minha mulher desatou a chorar, desesperadamente, abruptamente eu segurei firme sua mão e passei a acariciar seus cabelos, pedindo calma, mas ela soluçava profundamente, um choro que brotava de seu âmago.

 A dotôra não entendia nada, tentei explicar que a mãe pensava que seu filho era um menino, mas essa explicação foi muito precária e insuficiente para que ela entendesse o que se passava nas profundezas dos sentimentos dessa mãe em primeira viagem.

 A dificuldade em esclarecer qual o sentimento estava crepitando só aumentava sua dor e seu choro, pois ela não queria passar a falsa impressão de que tinha preferência por menino.

 A dor e a surpresa que assombraram essa mãe pura e sonhadora passou longe desses pequenos sonhos consumistas. Foi um tombo do alto posto de mãe superpoderosa para o de mãe desnaturada, mãe que não conhece seu próprio filho. Sentia-se culpada como se diante de duas crianças para pegar o seu filho... ela tivesse pego a criança errada.

 Por outro lado, sentia o golpe da novidade como se sua filha afirmasse, eu não sou o que você quer que eu sejaseu mundo de sonhos é só seu! eu sou uma pessoa livre e diferente! As frases que esperamos para a adolescência, essa mãe já sentiu com cinco meses de gravidez!

  Sentia-se multiplamente culpada, enredada pela teia que se formou de um único e simples equívoco. Culpada por ter conversado com sua filha como se fosse um menino, por ter socialmente apresentado sua filha como se fosse um menino, por não ter compreendido sua filha como deveria.

 Tentei confortá-la demonstrando que esse erro nenhum prejuízo trouxe, que é um erro muito mais frequente do que imaginamos, que num passado próximo, as mães só sabiam o sexo quando a criança nascia e era comum passar a gravidez inteira em erro, sem qualquer dano para a pessoa.

  Mas os argumentos são apenas a cobertura do bolo de sentimentos. Só o tempo pode bater uma nova massa para crescer novos sonhos. 

 Recebemos essa notícia bem cedo e após uma manhã de trabalho fomos almoçar juntos, eu esperava que ela já tivesse superado essa história, mas não, ainda estava quieta, pensativa, engasgada. Eu sentia na pele o que é solidariedade, vivia um sentimento que sabia que não era meu.

 Só pela noite quando revi o sorriso no seu rosto soube que tudo estava terminando bem. Ela viveu um dia de luto, deixou um filho para trás, temos agora uma outra gravidez, uma outra filha, que já veio intensa e com seu novo nome. Os filhos são assim, surpreendentes, mesmo antes de nascerem.

 Depois de tudo isso, saibam que ainda tem gente fazendo terrorismo: nos avisaram que mesmo esse ultrassom pode errar quanto ao sexo do bebê. Caramba! Emoção pouca é bobagem.


4 comentários:

  1. Nossa Marcelo, como vc escreve bem! Parabéns!
    Janaina I. C. Vant.

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  2. Ehe, a terrorista sou eu!! e li o post todo pensando nisto: e se for menino?
    Lindo! bjs Maura

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  3. Acompanho seu blog desde o inicio, sou amiga de sua mãe e fico encantada com a facilidade que voce tem para escrever, é maravilhoso "ouvi-lo" ou melhor ler suas postagens,ja presenciei essa cena da surpresa da mãe em descobrir que o sexo era outro mais de uma vez e saiba que nunca consegui fazer uma síntese tão intensa como a que voce fez aqui.
    Achei fantastica a sua forma de entender e expressar os sentimentos que afloraram na sua esposa.
    PARABÉNS!!!
    Desejo desde já que a Alice seja bem vinda.

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  4. Oi pessoal, agradeço pelos elogiosos comentários! Sigo escrevendo e sentindo e escrevendo e pensando e sentindo... Valeu!

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